Entrevista com Gisela Umbuzeiro

12 anos atrás

O Portal da Intertox entende que a segurança química das populações deve ser encarada como um assunto, também de Segurança Nacional. Sendo a água essencial a todas as formas de vida, a manutenção de sua qualidade em termos de biocompatibilidade e de sustentabilidade ambiental interessa a todos os segmentos de nossa sociedade, desde os consumidores até os governos, passando pela academia, por sociedades científicas e por defensores da causa ambiental.

Por isso, considerou-se muito oportuno o momento para se conhecer o que nos tem a dizer a doutora Gisela de Aragão Umbuzeiro.

 

Gisela Umbuzeiro possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Campinas (1979), mestrado em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Estadual de Campinas (1985) e doutorado em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Estadual de Campinas (1990). Realizou pós doutorado no National Institute of Environmental Health Sciences (NIEHS) e na Environmental Protection Agency (EPA) dos Estados Unidos. Atualmente é professora e pesquisadora da Faculdade de Tecnologia da UNICAMP. Trabalhou 22 anos na Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Mutagênese, Carciongênese e Teratogênese Ambiental. É professora do curso de Pós Graduação em Tecnologia e Inovação da Faculdade de Tecnologia da UNICAMP e credenciada na USP no curso de pós graduação em Toxicologia e Análises Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas. Tem experiência na área de Toxicologia Ambiental, atuando principalmente em: mutagênese, ecotoxicologia, toxicologia regulatória, nanotoxicologia e toxicologia de corantes.

 

Perguntas do Portal da Intertox

1. Doutora Gisela, fazendo uso de uma boa filosofia, a de começar pelo começo, o que é a Sociedade Brasileira de Mutagênese, Carcinogênese e Teratogênese Ambiental, a SBMCTA?

G. Umbuzeiro: É uma sociedade que foi fundada em 1989 e teve um papel importantíssimo na lei de agrotóxicos. Mais recentemente ela vem atuando tanto na área de ciência pura como aplicada, com enfoque na proteção do ser humano e da biota. Os efeitos causados pelas substâncias que estudamos são o câncer, o envelhecimento precoce e problemas relativos à reprodução e desenvolvimento. Alguns de seus associados fazem parte também da Sociedade Brasileira de Toxicologia e da Sociedade Brasileira de Ecotoxicologia, pois essas três sociedades em conjunto tem grande importância no desenvolvimento da toxicologia ambiental no país.

2. E o que é o Protocolo para Derivação de Critérios de Qualidade da Água para o consumo humano no Brasil? Como foi concebido, qual o histórico, no que implica e quais seus benefícios?

G. Umbuzeiro: O Brasil, apesar de um país já considerado desenvolvido por muitos, ainda não tem um protocolo próprio disponível para o público em geral sobre como são derivados os critérios de potabilidade, proteção da vida aquática, irrigação etc. Sabemos que o grupo de trabalho, que é formado quando é necessário fazer a revisão da nossa portaria, utiliza como base os valores preconizados pela Organização Mundial da Saúde. Porém, a maioria dos países como Estados Unidos, Austrália, Alemanha etc. têm seus protocolos publicados nas páginas eletrônicas das agências que os propõe. Isso é muito importante, pois reduz conflitos durante o processo de estabelecimento dos critérios nacionais. Quando as regras estão bem definidas e disponíveis para todos os envolvidos no processo tudo fica mais fácil. Por isso resolvemos fazer o workshop para discutir estratégias para derivação de critérios de qualidade de água para o Brasil. Chamamos especialistas muito experientes de vários países e discutimos qual seria o melhor para o país, com base nas discussões que ocorreram durante 5 dias. Como sabemos, cada país tem seu banco de dados de doses de referência, sua classificação quanto a carcinogenicidade e seu algoritmo de cálculo. Qual escolher para o país? Colocando todos juntos numa mesma sala foi possível escolher o melhor de cada método, por exemplo, nossa proposta foi formulada adotando-se as doses de referência da base de dados da USEPA, mas a classificação escolhida foi a IARC. Nossa maneira de lidar com compostos que não se tem dados toxicológicos suficientes mas estão presentes na água foi a abordagem da Alemanha. Dessa forma, pegamos o melhor de cada país ou agência e propusemos algo factível e moderno, que poderá ser usado como base para que o Ministério da Saúde discuta e proponha um método para o Brasil.

3. Até que ponto podemos adotar no Brasil, diretamente, um padrão, no campo da gestão do uso das águas, por exemplo, desenvolvido por outro país e em sua realidade, isto é, como e quando se pode derivar?

G. Umbuzeiro: Para se derivar padrões muitas vezes pensamos, como toxicologistas, que o padrão é o produto do processo da avaliação de risco, ou seja basta usar a fórmula dose de referência multiplicada pela fração de ingestão via água, o peso de um adulto e dividir pela quantidade de água ingerida. Porém isso não é verdade. Além da etapa de avaliação do risco devemos fazer o que chamamos de gerenciamento do risco. Analisar com muito cuidado quais os impactos econômicos e tecnológicos que estão envolvidos. Temos que verificar se há capacidade analítica e tecnológica para atendimento dos padrões desejados, verificar os custos envolvidos na remoção de determinadas substâncias na água. Por exemplo, muitas vezes a única água disponível em uma região contém naturalmente uma substância cancerígena, muitas vezes por um período de tempo será necess&
aacute;rio aceitar um risco maior que o que gostaríamos, para que a população tenha acesso a água potável.

4. O que é o princípio da minimização e como se o aplica?

G. Umbuzeiro: O principio da minimização no sentido geral é o que deveria nortear nossas ações para se ter um ambiente saudável, ou seja, deveríamos usar o mínimo possível de compostos tóxicos para que tenhamos que lidar apenas com um pequeno número de substâncias químicas tóxicas na água, por exemplo, aquelas que estão presentes naturalmente na água devido ao tipo de rocha onde a água está armazenada.

5. Um carcinógeno, ou uma substância genotóxica, pode ou não estar presente em água potável? Pode haver um conceito de limite permitido para um carcinógeno?

G. Umbuzeiro: Diferentemente de um toxicologista clássico, eu partilho da opinião de vários colegas da área de mutagênese, que por reconhecer a existência de processos muito eficientes de reparo de DNA, acredita que há um limiar para carcinógenos. Mas não é assim que isso vem sendo tratado na toxicologia clássica. Assim sendo, respondo a sua pergunta, sim compostos mutagênicos estarão sempre presentes em alguma concentração nas águas, nem que sejam algumas moléculas, pois hoje sabemos que esses compostos são ubiquitários, tanto de fontes naturais como antrópicas. É difícil imaginar uma água que não tem nenhuma molécula de cromo, por exemplo. Outro exemplo, águas tratadas em geral têm compostos gerados de forma secundária, devido ao processo de desinfecção. Os compostos mais conhecidos são os ácidos halogenados e os trialometanos que têm propriedades mutagênicas e carcinogênicas conhecidas há longo tempo.

6. Como entender que muitas substâncias tenham um limite de concentração admissível para água potável se a exposição simultânea a elas por outras fontes de contato pode estar sendo muito mais representativa?

G. Umbuzeiro: Quando se trata de cálculos de padrões de potabilidade, como os mesmos usam doses de referência, que são calculadas com boa margem de segurança, estamos de certa forma protegidos. Sempre utilizamos apenas uma fração da dose de referência para água (usualmente 10 a 20%) deixando então grande parte da dose segura para outras vias de exposição.

7. Substâncias passíveis de formação química durante o próprio tratamento das águas de abastecimento, como, por exemplo os tri-halometanos, THM, como devem ser considerados?

G. Umbuzeiro: Sempre digo … eles são um mal necessário… pois até hoje não descobrimos formas de eliminar os microrganismos da água sem gerar subprodutos. Os clorados vêm sendo os mais estudados, pois o cloro é sem dúvida o desinfetante de menor custo. Mas existem outros métodos de desinfecção como o ozônio, que gera também subprodutos nocivos à saúde. Mas muitas vezes podemos garantir águas de boa qualidade microbiológica sem adição do cloro, como é o caso das águas subterrâneas oriundas de poços protegidos. Na minha opinião, ainda temos muito para caminhar nesse campo de pesquisa, especialmente no Brasil. Temos que encontrar uma maneira de obter água segura do ponto de vista microbiológico e químico, com o menor custo para a saúde e para o pais.

8. Do ponto de vista operacional, estamos capacitados no Brasil a executar as análises laboratoriais para controle das substâncias químicas incluídas nesses critérios?

G. Umbuzeiro: Sim, estamos, especialmente se considerarmos o eixo Sul e Sudeste. Em outros estados ainda precisamos de reforço do ponto de vista de quantidade de laboratórios. Mas temos laboratórios acreditados no país e acredito que a demanda levará à instalação cada vez maior de um bom parque analítico e com o aumento da demanda, os custos tendem a ser reduzidos. Talvez investimentos induzidos serão necessários para viabilização de mais e melhores laboratórios no país. Uma coisa é certa: tecnologia analítica e de tratamento não faltam. O que falta é torná-las uma realidade para todos. Custos, sempre depende da prioridade. Enquanto tivermos uma estratégia que resume sanear em afastar esgoto e contar com a auto-depuração, estaremos contribuindo para piorar a qualidade da água de beber. O problema central, no meu ponto de vista, não está em tratar a água, mas sim tratar os esgotos. E não estou falando de efluentes industriais, mas sim dos domésticos. Com a aglomeração urbana não temos saída senão usar tratamentos terciários, antes de lançá-los no ambiente aquático. Seria interessante que a população em geral soubesse isso, ou seja, grandes cidades têm um custo maior, pois os corpos hídricos a serem utilizados como receptores ficam em menor proporção e obviamente todos teremos que pagar por isso.

9. Qual a expectativa da senhora quanto ao avanço desse tema entre nós? O que se deve esperar das autoridades competentes do setor? Nossas políticas públicas contemplam a contento a questão?

G. Umbuzeiro: Tenho uma opinião um pouco diferente da maioria, talvez por ter trabalhado durante 22 anos em um órgão público. Acho que os atores envolvidos trabalham muito, muito mesmo. Somos poucos em todos os lados. As autoridades do setor saúde vêm desempenhando um papel importantíssimo na área de controle de doenças, desenvolvendo vacinas, gerando dados e fazendo campanhas de conscientização, mas a parte da seguran&cc
edil;a química da água ainda precisa de mais atenção. Uma proposta seria a formação de um grupo técnico permanente trabalhando de forma contínua para subsidiar cada revisão da portaria. Acredito que aumentar a capacidade técnica dos profissionais nessa área seja chave para o país, essa foi uma das motivações que me levou a entrar na universidade, para ensinar toxicologia ambiental e fazer pesquisa aplicada. A cada ano formamos quase uma centena de alunos, que saem da faculdade de Tecnologia em Controle e Saneamento sabendo a diferença de risco e perigo, como derivar padrões de potabilidade e o que está envolvido nesse processo. Como me disse um dia uma amiga de Brasília, “onde falta informação, sobra preocupação”. Assim acredito que devemos ensinar os conceitos básicos para que as opiniões comecem a ser formadas pelo maior número de pessoas, sempre de forma técnica e baseada na literatura científica.
Temos que nos unir, trabalhar em conjunto, especialmente os toxicologistas desse país, que são tão poucos também… precisamos de mais gente especializada tanto nos órgãos púbicos como nos privados. Um exemplo de que “ninguém é melhor do que todos nós juntos” foi nosso workshop, que congregados pelas sociedades científicas (SBMCTA, SBTOX e SETAC BR) reuniu pesquisadores, técnicos de governo, de empresas de saneamento e produtoras de água, laboratórios privados, entre outros atores, tanto do Brasil como do exterior para juntos chegarmos a uma proposta moderna, baseada nos erros e acertos de outros países e aplicável para o Brasil, e quem sabe para América Latina.

Para saber mais: Disinfection By-products: A Question of Balance

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